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ADUR Online #1: Trabalho produtivo e trabalho reprodutivo: desigualdades de gênero em tempos de pandemia

7 de agosto de 2020

ADUR ONLINE*
Por: Marina Cordeiro e Moema Guedes, professoras do departamento de Ciências Sociais da UFRRJ

 

A situação de confinamento a que fomos expostos diante da pandemia da COVID-19 em 2020 trouxe inúmeras alterações no cotidiano dos indivíduos e famílias. O isolamento social imposto e seu contraponto, a convivência entre os familiares – em certa medida “forçada” – impactaram consideravelmente as relações entre trabalho remunerado e não-remunerado, trazendo à tona inúmeros conflitos, e especialmente, àqueles relativos às dinâmicas de gênero. Este é um cenário propício de reflexão acerca da família enquanto instituição, expondo desigualdades menos evidentes, que as correlatas à própria estrutura de classe da sociedade brasileira.

A realidade cotidiana impõe aos membros da família, ainda que de forma diferenciada, duas naturezas de obrigações: uma primeira visando o provimento dos gastos, supridos através do trabalho produtivo, conectado às dinâmicas de mercado, e um segundo, de cuidado das pessoas e atividades domésticas, marcadas por sua invisibilização e desvalorização pelo fato de não gerar valor monetário. Este segundo tipo, por vezes naturalizado como “amor”, também se configura como trabalho e portanto, numa perspectiva epistemológica feminista, é nomeado como trabalho não-remunerado.

Nos domicílios de camadas médias, privilegiadas por conseguirem obedecer aos padrões de isolamento impostos pelas medidas sanitárias, vemos uma mudança de natureza e volume neste trabalho reprodutivo. O novo contexto visibiliza estas tarefas, seja porque há um aumento no número de horas gasto com elas, seja porque são desempenhadas no mesmo ambiente que o trabalho “remoto”, colocando em cheque a abstração de separação completa entre as dimensões produtiva e reprodutiva da vida social.

Do ponto de vista laboral debate-se muito as condições de manutenção dos gastos básicos das famílias através dos contratos de trabalho de quem está inserido efetivamente no mercado. Tendo-se em vista que grande parte da população se encontra na informalidade ou em condições bastante precarizadas (41% dos empregados são informais[1] segundo dados da PNAD 2019) – quadro agravado pela reforma trabalhista – a adoção de medidas como renda mínima universal se fazem urgentes. Ressaltamos que a operacionalização desta política pública tem exposto inúmeros problemas, dificultando o acesso à renda mínima e colocando os mais pobres em condições ainda mais desiguais. Essa seria a única saída no sentido de assegurar condições básicas de manutenção dos gastos correntes das famílias. Seguindo a argumentação de Therborn (2010) acerca dos distintos tipos de desigualdade, a existencial, material e vital, pode-se apontar que a última – que incide sobre as condições de saúde e morte – desponta com força no contexto pandêmico. Se saúde e longevidade são distribuídas segundo padrões sociais, é fato que as condições materiais tem impacto fundamental e refletem maiores possibilidades de preservação de vida ou de morte diante da Covid-19. Isso porque pertencer às camadas mais pobres da população significa maior exposição ao risco de contaminação em transportes públicos e pior acesso à rede de saúde de qualidade.

Vale destacar, no entanto, que os debates no mundo público pouco mencionam as desigualdades vitais e tem se centrado mais na dimensão da economia monetária – ressaltando a insígnia de que “precisamos voltar a trabalhar”. A premissa escamoteia os riscos a que estaria exposta a parcela mais pobre da população brasileira – retirando o Estado de seu papel de salva-guarda do bem estar populacional ao seguir uma orientação de cunho liberal. No que se refere às questões de gênero especificamente, este discurso reitera a falácia da divisão público e privado, tomando a dimensão do trabalho de reprodução social, não remunerado, em esfera doméstica privada, como equivalente a não-trabalho.

Esta divisão de espaço e tempo de trabalho e não-trabalho, ancorada na separação entre público e privado e na perspectiva simbólica de atribuição ao espaço da casa o sinônimo de “descanso”, é uma das principais contribuições dos estudos de gênero à sociologia do trabalho e a própria configuração do conceito de trabalho. Neste sentido, a crítica feminista ao mesmo e sua concepção centrada na dimensão do assalariamento impõe uma desconstrução epistemológica necessária, na medida em que se busca reintegrar o muitas vezes chamado “trabalho invisível das mulheres”, à dinâmica da vida econômica social como um todo.

A perspectiva feminista materialista implode a definição própria de trabalho compreendendo-o como “produção do viver em sociedade”, atividade política que transforma a sociedade e a natureza e, no mesmo movimento, gera transformações naqueles que o desenvolvem (KERGOAT, 2016, p.18). Nestes termos, a divisão entre tempo e espaço de trabalho e de não-trabalho, assim como a dicotomia correspondente, dão lugar à uma perspectiva analítica que considera as condições de trabalho e vida dos trabalhadores compreendidos para além da figura masculina, urbana e industrial, uma vez que a “classe operária tem dois sexos”[2]. Para uma apreensão das práticas sociais do mundo do trabalho – compreendido para além do assalariamento – é preciso considerar, numa perspectiva interseccional ou consubstancial (HIRATA, 2014; KERGOAT, 2016), a dinâmica interrelação entre seus aspectos reprodutivo e produtivo, bem como as relações sociais de sexo, classe e raça.

Considerando o caso de famílias de classe média escolarizadas e que atentam aos protocolos, um dos maiores elementos de “apaziguamento” dos conflitos entre os casais burgueses (KERGOAT, 2016) está indisponível: as empregadas domésticas – propositalmente escritas no feminino, tendo em vista que são em sua maioria, mulheres pobres e no caso brasileiro, negras. A estrutura marcadamente desigual de nossa sociedade se reflete no papel fundamental desempenhado pelas empregadas, que permitem a externalização do trabalho doméstico e maior flexibilidade das mulheres conforme as demandas de envolvimento no trabalho remunerado. Ainda que a gestão e supervisão das atividades a serem desempenhadas pela profissional esteja a cargo das patroas, esta delegação libera uma carga expressiva em termos de horas de trabalho[3].

Se neste nível micro do interior dos casais – e restrito às camadas burguesas – há uma redução dos conflitos, em nível macro este tipo de arranjo permite evitar a reflexão sobre o trabalho doméstico, exercendo “uma função regressiva a esse respeito, pois funciona no âmbito da dissimulação e da negação”, gerando uma “pacificação que não faz avançar um milímetro a luta pela igualdade entre mulheres e homens” (KERGOAT, 2016, p.24). A necessidade de dividir o espaço doméstico 24 horas por dia com os outros membros da família, sem o suporte das trabalhadoras domésticas, da escola ou outros cuidados terceirizados, tem trazido diversos tensionamentos entre os casais. Esta situação expõe questões sensíveis desta sociedade capitalista e patriarcal: a incompatibilidade entre as jornadas de trabalho remunerado e não-remunerado, a necessária contratação de serviços de cuidado para disponibilização de tempo para investimento na carreira ou profissão, e a sobrecarga de trabalho das mulheres.

A nova rotina escancara o trabalho contínuo e invisível ao qual as mulheres trabalhadoras estão submetidas sem muitas evidências de mudança: Silvia Federici (2017) a nomeia como a mais antiga forma de “escravidão consensuada”. Por outro lado, abre-se uma oportunidade para a renegociação do gigantesco trabalho invisível desempenhado pelas mulheres em moldes mais igualitários. No entanto, isto tem levado muitos casais a reverem seus acordos, reavaliarem suas divisões de tarefas e debaterem questões historicamente latentes, por vezes, exacerbando conflitos.

Nas famílias com duplo provimento, outra característica que tem sido registrada é o impacto negativo do confinamento na trajetória profissional e carreiras femininas. Considerando o tempo como um recurso de valor desigualmente distribuído, com conflitos potenciais para sua alocação e uso, é fundamental apontar que a disponibilidade temporal para investimento na carreira tem se reduzido, particularmente para as mulheres. Um dos casos em que já surgem evidências neste sentido, é entre os pesquisadores e acadêmicos[4]. Diversas revistas acadêmicas vêm sinalizando uma forte mudança no padrão de submissão de artigos no período de confinamento. A ampla maioria dos autores que submetem manuscritos é de pesquisas de homens, o que configura um padrão completamente distinto do observado nos anos anteriores.

No mercado de trabalho em geral as mulheres foram mais afetadas por já se encontrarem em empregos mais precários antes da pandemia – tais elementos incidem, em especial no contexto da reforma trabalhista, no fato de que estas trabalhadoras tendem a ser mais facilmente dispensáveis/demitidas, além do enorme contingente já em condições de informalidade. Tais elementos demonstram como a questão de gênero é fundamental para a compreensão das desigualdades no mercado do trabalho, e como a situação da pandemia e os impactos nos cotidianos dos indivíduos e famílias, expõem de forma mais contundente tais dinâmicas.

Por um lado, estamos diante de um possível acirramento das desigualdades de participação no mercado de trabalho – e também, na distribuição dos altos postos das carreiras. Por outro lado, a possibilidade de ampliação da discussão sobre divisão sexual do trabalho e uma distribuição mais equânime entre homens e mulheres do tempo dedicado ao trabalho não remunerado e de cuidados – o que não parece estar no horizonte.

 

[1]Trabalho informal é aquele que ocorre quando o empregado não tem registro na carteira de trabalho e, consequentemente, também não recebe os benefícios determinados pela CLT (Consolidação das Leis de Trabalho), como licenças, férias, aposentadoria, seguro-desemprego, FGTS e outros.

[2]Reconhecemos o debate sobre o não binarismo sexual, mas aqui para fins de análise seguimos a distinção de sexo binária.

[3] Diversas economistas, como Hildete Melo et al., (2007), sustentam a importância política de incluímos o trabalho doméstico no calculo do PIB a fim de visibilizar sua contribuição para a economia.

[4] Nesse sentido ver o editorial da revista DADOS disponível em: http://dados.iesp.uerj.br/pandemia-reduz-submissoes-de-mulheres/?fbclid=IwAR0f-6JOd4NNDIQV8iCBbm4AioZZthhNgV6mATZluDXoq1WUTbyHmDMpN0  Acessado 20/05/20

e  carta enviada por pesquisadoras do Parent in Science para a revista Science, disponível em: https://science.sciencemag.org/content/368/6492/724.1?fbclid=IwAR3XUEGF3PoVKp_9G7yt1Bd527q5ViiOZHCIUpZ5q0IVO0TaQwvA-xe5T3M Acessado 20/05/20

 

 

*ADUR ONLINE é um espaço da base do sindicato. As opiniões expressas no texto não necessariamente representam a opinião da Diretoria da ADUR-RJ.

A versão completa do texto está disponível neste link.


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